Jazz – do New Orleans ao Jazz moderno

O panorama cultural no Portugal dos anos 50 e 60 era um deserto e o Jazz não era excepção. Ainda assim, impulsionado pelos primeiros divulgadores, que haviam fundado o Hot Club, e em especial Luis Villas Boas, que era o autor do primeiro programa de rádio de Jazz e também de alguns artigos teóricos na imprensa, alguns primeiros entusiastas foram surgindo, que motivaram a publicação de alguns livros. Em texto anterior eu já referi o Jazz de Rex Harris de 1952, e mais tarde, doze anos depois, o História do Verdadeiro Jazz de Hughes Panassié; mas pelo meio algo se passou.

Portugal era um país fechado ao exterior, mas ainda assim alguns livros em inglês e francês, e, claro, discos, teriam circulado, e uma elite – maioritariamente estudantil – entabulava alguns passos no Jazz (e na política, mas isso é outro assunto), que culminaria na constituição do CUJ – Clube Universitário de Jazz, onde José Duarte e Raul Calado eram figuras proeminentes, ainda no final dos anos 50 – de efémera actividade: a PIDE não gostava de brincadeiras.

E é neste panorama que surge o segundo livro de Jazz em Portugal, em 1959, um livro de bolso da Marabu-Notícias, quadrado na sua forma, 10x10 cm, de divulgação, sem grandes pretensões: Jazz – do New Orleans ao Jazz moderno; que ladeava na colecção com outros títulos sobre ioga, condução automóvel, interpretação dos sonhos, cães ou bricolage.

O tom é sempre bastante leve mas, como livro de divulgação, ele cumpre bastante bem o seu propósito; começando com um glossário, onde se define swing, ragtime, boogie-woogie, jam session, west coast, riff, ou bateria, trombone, hot, scat, ou JATP.

Às «Palavras Chave» segue-se a história do Jazz em 80 (pequenas e quadradas) páginas, desde os primeiros escravos na América, em 1619, a afirmação dos folclores negros americanos, a instrumentação, o aparecimento do ragtime, e New Orleans, como segundo capítulo.

Com o fim da Storyville, o livro salta para Chicago, o aparecimento do Jazz branco, e depois, no capítulo seguinte, o Harlem, Duke Ellington, os percursores do Jazz moderno e o bop, e em novo capítulo, São Francisco e o cool jazz.

Apesar de este ser um livro de divulgação, é curioso notar que os autores introduzem aqui e ali algumas questões mais teóricas ou polémicas. Os autores criticam fortemente o Jazz branco de Chicago e o dixieland – o Jazz caricatural, até nas roupas e nos trejeitos, do Jazz de New Orleans, levantando questões como a fricção entre os músicos de ragtime crioulos e músicos negros no final do século XVIII, ou o «Local do nascimento do jazz», ou ainda porque é que o Jazz só poderia ter nascido na América (EUA), e porque é que a música do Caribe ou do Brasil é diferente. Eles explicam:

Nas ilhas da América Central e na América do Sul, onde se implantou a cultura espanhola ou portuguesa, a música dos negros … difere essencialmente do jazz pelas suas frases melódicas de inspiração nitidamente mourisca e pela maior variedade e riqueza do acompanhamento polirrítmico…

Em resumo, pode dizer-se que o jazz nasceu em todas as encruzilhadas onde se encontraram:

1.º - Negros vindos do Oeste africano e não iniciados nas tradições musicais do Ocidente;

2.º - a língua inglesa;

3.º - melodias vindas da Europa:

4.º - instrumentos de música.

O resumo, reconta em poucas páginas as características da música expressionista africana, passando para os blues, a improvisação colectiva, os solistas, o jazz branco, o swing, o be-bop e o cool, o soul e a nova vanguarda.

A descrição do encontro da África Ocidental com a América de língua inglesa é interessante:

Na África Ocidental o ponto de partida é uma música essencialmente expressionista… A sua forma é o ritmo e uma escala pentatónica. Melodicamente, obedece às inflexões da língua africana, na qual as tonalidades expressivas são utilizadas para dar às apalavras a sua significação. Não há harmonização, mas principalmente um contraponto rítmico. Também não há construções, pois toda essa música é apenas movimento. Desenvolve-se para exprimir a evolução de um estado de alma colectivo, segundo uma progressão dramática, não combinada e que se resolve numa espécie de transe a que geralmente só a fadiga põe fim.

Apetrechados com esta bagagem musical, os negros transportados para os Estados Unidos são postos em contacto, por um lado com a língua inglesa, por outro, com a língua ocidental, baseada na escala diatónica e obedecendo a estritas regras de construção.     

O capítulo – secção seguinte é dedicado aos grandes nomes do Jazz, pequenas biografias de algumas dezenas de músicos espartilhadas em poucas linhas – entre três a quinze -, por ordem alfabética; e por fim uma discoteca básica de gravações de Gospel, Blues, Armstrong, Bechet, Jelly Rool Morton, Duke Ellington, Count Basie, Bennie Goodman, Fletcher Henderson, Art Tatum, Lionel Hampton, Coleman Hawkins, Fats Waller, Johnny Hodges, Django, Lester Young, Dizzie, Parker, Miles Davis, MJQ, Messengers, Bud Powell, Errol Garner, Coltrane, Sonny Rollins, Monk, Mulligan, Mingus, Clifford Brown, Dexter Gordon, Wes Montgomery, Jimmy Smith, Cannonball Adderley, Roland Kirk, Paul Gonzalves, Bill Evans, Martial Solal; e terminava com Billie Holiday, Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan.

Curioso é enfim o nome original do livro, em francês, De la Bamboula au Be-Bop (bamboula: nome caribenho de tambor africano, também uma dança), escrito numa colaboração de três autores: Bernard Heuvelmans, Jean Tarse e Carlos de Radzitzky. Mais conhecido como o pai da da criptozoologia, Heuvelmans escreveu também alguns livros sobre o Jazz, e em especial o bebop, de que era um aficionado. Jean Tarse tem alguns livros sobre assuntos genéricos, e alguns sobre dança, valsa e Jazz; e o Barão de Radzitzky d'Ostrowick foi um crítico de Jazz, poeta e jornalista.

O livro tinha ilustrações de Henri Lievens, ilustrador e desenhador de banda desenhada da escola franco-belga, com inúmeros trabalhos na Pilote e Spirou.

Jazz – do New Orleans ao Jazz moderno, um curioso livro de divulgação, nos longínquos anos da década de cinquenta.